“Existem três tipos de clientes da Netflix: um grupo gosta da conveniência da entrega gratuita em casa; outro aprecia o acesso a uma ampla seleção de filmes da nouvelle vague e de Bollywood; e o terceiro curte a barganha de assistir a dez ou mais filmes por US$ 18 ao mês. Precisamos manter os três públicos felizes, porque, quanto mais a pessoa usa a Netflix, mais ela quer permanecer conosco.”

O ano era 2005, e a Netflix ainda não oferecia streaming de vídeo; resumia-se a uma empresa de locação de DVDs pelo correio. Mas, naquele depoimento para a revista Inc., seu fundador, Reed Hastings, parecia saber exatamente o que fazer para transformar a marca em uma potência do entretenimento mundial. A própria criação da Netflix, em 1997, está vinculada à premissa do foco total no cliente.

Hastings vislumbrou o negócio depois de ser obrigado a pagar US$ 40 por devolver com atraso o VHS de Appolo 13 em uma Blockbuster. Em apenas dois anos, a base de usuários da Netflix já contava com 239 mil pessoas. O resto da história você conhece. O envio de DVDs pelo correio ficou obsoleto, mas, antes, a Netflix migrou para o streaming. Já a Blockbuster, que chegou a ter 9 mil lojas nos Estados Unidos, pediu concordata em 2010. Uma década antes, havia tido a chance de comprar 49% da Netflix por US$ 50 milhões e recusado.

E, quando resolveu criar uma solução própria de filmes online, era tarde. Hoje a Netflix tem mais de 100 milhões de assinantes e valor de mercado superior a US$ 60 bilhões, e a Blockbuster é insignificante.

Incontáveis fatores levaram a Netflix a crescer vertiginosamente e a Blockbuster a sumir do mapa. Nenhum deles, no entanto, foi tão fundamental quanto a capacidade de interpretar um mundo cada vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo – cenário que, em inglês, é resumido pela sigla VUCA – e a adaptação rápida ao que acontece. Cunhado pelo Exército norte-americano para lidar com conflitos no Oriente Médio nos anos 1990, o acrônimo extrapolou os círculos militares para deixar sua marca no meio corporativo.

A Netflix soube fazer essa interpretação e se adaptar; a Blockbuster não. Empresas como Google e Amazon dificilmente chegariam ao nível de excelência que têm hoje se não tivessem líderes com capacidade de interpretar o VUCA e se adaptar. Enquanto a maioria das organizações insiste em planejamentos estratégicos de longo prazo e aposta todas as suas fichas em teorias como as cinco forças de Porter ou a matriz SWOT –, Netflix, Google e Amazon aceitaram que a não linearidade dos fatos veio para ficar e vivem plenamente o mundo VUCA. Fazem isso sendo rápidas para se adaptar ao que acontece a sua volta. Fazem isso reduzindo as fragilidades que, ante acontecimentos fortuitos, poderiam levá-las ao colapso.

Um número crescente de empresas tem compreendido que viver o mundo VUCA significa tomar duas decisões: tornar-se ágil, como o desenvolvimento de software, e antifrágil, como prega o ensaísta e matemático libanês-americano Nassim Taleb, que é professor de engenharia de risco da escola politécnica da University of New York.

O ágil é rápido para se adaptar porque divide seus projetos em diversas etapas e faz cocriação com o cliente em todas elas. O antifrágil não apenas tem uma estrutura que resiste bem às crises, mas sai fortalecido delas. Taleb recorre, inclusive, à mitologia grega para representar a antifragilidade: antifrágil é a hidra, que, ao perder uma cabeça, ganha duas e fica mais poderosa, muito superior à fênix, que, quando renasce das cinzas, volta igualzinha ao que era antes.

Este Dossiê se apropria das metáforas de Taleb mantendo a hidra associada à antifragilidade e conectando a fênix à agilidade – a ave vive em etapas, pois morre e renasce, voa rápido e era ligada ao deus Hermes na Grécia antiga, representada em seus templos. Simbolicamente, no mundo VUCA, é preciso ser fênix e hidra ao mesmo tempo, conceitos cuja complementaridade é cada vez mais visível.

Uma coisa é compreender tudo isso; outra, bem diferente, conseguir mudar nessa direção.

A Agilidade

A concepção de ágil remete ao adjetivo que denota mover-se com velocidade, mas o transcende. Do inglês agile (pronuncia-se “ajaiel”), os métodos ágeis são a marca registrada do desenvolvimento de software, que é uma prática de gerenciamento de projetos em empresas de tecnologia.

O que nem todos sabem é que as origens da filosofia ágil remontam ao chão de fábrica da indústria automobilística norte-americana, algo que logo seria empregado e aprimorado pelas montadoras japonesas. A principal delas foi a Toyota, criadora da filosofia lean de gestão, orientada à mitigação do desperdício. A empresa popularizou o sistema kanban, um modelo visual de abastecimento baseado em anotações em cartões coloridos, uma espécie de precursor dos post-its.

Seguindo os mandamentos do lean, as equipes da Toyota valiam-se do kanban para horizontalizar a comunicação muito antes da massificação dos smartdossiê phones, tablets e computadores de última geração.

Não foram só os primórdios da qualidade total; ali nasciam a flexibilidade extrema, o compartilhamento do risco e a busca da melhoria contínua e incessante.

Em fevereiro de 2001, quando o mundo já se mostrava extremamente volátil, um grupo de programadores se reuniu em um resort nas montanhas de Wasatch, em Utah, EUA. O objetivo não era aproveitar a estação de esqui do local, e sim criar um fórum para repensar os rumos da indústria de tecnologia. Ao fim de dois dias de encontro, aqueles 17 homens de nomes conhecidos no segmento lançariam o documento Agile Manifesto, traduzido no Brasil como Manifesto do Desenvolvimento Ágil de Software.

Em sua essência, o movimento defendia a descoberta e o compartilhamento de melhores práticas para o desenvolvimento de software. Sabia que seria preciso promover a valorização das relações humanas e a colaboração com o cliente e reduzir o rigor característico dos planejamentos de longo prazo e das negociações contratuais.

Isso foi uma pá de cal sobre décadas de gerenciamento de projetos no modelo em cascata, em que o desenvolvimento era feito de modo sequencial, sustentado pela tríade ortodoxa de planejamento, execução e teste. O envolvimento do cliente, antes restrito à primeira e à última etapa, agora seria bem mais frequente. Os métodos ágeis incluíam projetos conduzidos por equipes independentes e com a ajuda de frameworks, espécies de templates.

O movimento ágil, organizado por um grupo de programadores em Utah, em 2001, enterrou o gerenciamento em cascata

“A grande diferença dos métodos ágeis é que eu faço um projeto sem saber qual será o produto final; sei meu compromisso com o objetivo final e vou inserindo o cliente em cada etapa do projeto para definir a próxima”, detalha Pedro Waengertner, professor da ESPM-SP e cofundador da aceleradora de startups Ace.

O manifesto dos desenvolvedores explica por que as organizações da área de tecnologia foram as pioneiras na proliferação dos métodos ágeis e tem parte da culpa por empresas como Netflix, Google e Amazon brilharem tanto. “A Amazon vai além: é o tipo de empresa que tem o ágil no core business, que não aceita esperar nada para gerenciar seu negócio”, explica Waengertner. No caso da Amazon, as equipes independentes são as próprias plataformas independentes sobre as quais ela se movimenta, que lhe permitem atender o consumidor de qualquer parte do mundo com muita rapidez.

O problema é que, passados 16 anos do Agile Manifesto, boa parte das organizações de fora dos setoresde tecnologia ainda não adotou a mentalidade ágil. E, ao mesmo tempo, o mundo se tornou VUCA, trazendo novos e complexos desafios.

A Antifragilidade

Uma das características do mundo VUCA são os fatos imprevisíveis, capazes de transformar a sociedade de um dia para o outro, como foi o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Eles foram chamados pelo matemático Taleb de “cisnes negros” no best-seller A lógica do cisne negro, que, em 2006, profetizou a crise econômica de 2008 tanto do ponto de vista dos estragos nos mercados de derivativos como da perspectiva da quebradeira no mercado imobiliário norte-americano.

Luiz Fernando Roxo, CEO de Zeneconomics

Luiz Fernando Roxo, CEO da Zeneconomics
Luiz Fernando Roxo, CEO da Zeneconomics

A maneira de abordar os cisnes negros é a antifragilidade, como explica Taleb em outro best-seller, Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos, em que ele dissemina a ideia de que é possível usar o limão mais ácido, azedo e ressecado para fazer uma deliciosa limonada. Segundo Taleb, podemos ficar muito mais fortes após o caos proporcionado por uma situação extrema. A crise de 2008, por exemplo, levou governos, organizações e pessoas do mundo inteiro à falência, mas trouxe lições que tornaram o sistema financeiro como um todo mais robusto.

Como as empresas podem aplicar na prática a teoria de Taleb? Um dos caminhos mais assertivos é remover o máximo de fragilidades que afetam o negócio – ou mesmo a vida das pessoas envolvidas.

Em outras palavras, é preciso adotar a chamada “via negativa”, em que 90% dos problemas podem ser solucionados com um único movimento – excluindo os excessos. Outro pilar da antifragilidade é o comportamento empreendedor. “Todo empreendedor começa o negócio com chances negativas, indo contra a probabilidade. É o sujeito que corre riscos em prol do todo, o que é fundamental para a antifragilidade”, explica Luiz Fernando Roxo, CEO da consultoria Zeneconomics e especialista no tema, que apresenta o programa Os antifrágeis com o economista Richard Rytenband, no YouTube.

Pedro Waengertner, profesor de agile MKT de la ESPM-SP

Pedro Waengertner, professor de agile MKT da ESPM-SP
Pedro Waengertner, professor de agile MKT da ESPM-SP

A antifragilidade se faz também com diversificação de lideranças, como acrescenta Rytenband, além da existência de redundâncias, clientes múltiplos (para não haver dependência extrema), baixo endividamento (o que reduz a exposição e permite aproveitar oportunidades) e uso reduzido de recursos e pouco desperdício (o conceito de lean da Toyota).

Há exemplos de antifragilidade made in Brazil, segundo Rytenband, como a Chilli Beans. “Foi a única empresa de óculos que cresceu na crise, utilizando uma estratégia totalmente descentralizada, cortando custos e diversificando a produção”, comenta o economista. Ao sentir a queda no fluxo de grandes shopping centers, a marca apostou em cidades do interior, reduziu a produção de itens premium e apostou em modelos populares.

A Chilli Beans, que vem crescendo durante a crise, promoveu uma descentralização, como prega a cartilha da antifragilidade

Resultado: enquanto o segmento de óculos de sol deve encolher 10% em 2017, a Chilli Beans projeta crescer 7,4%, chegando a uma receita de R$ 650 milhões. “Nossa marca tem um enorme apelo a potenciais franqueados, e a demanda de novas franquias se manteve mesmo nessa época de dificuldades”, afirma seu fundador, Caito Maia.

Unindo as pontas

Agilidade e antifragilidade têm em comum os princípios de descentralização, empreendedorismo e muito mais. Na verdade, mesmo não havendo comprovação científica disso, como seria preferível para Taleb, elas são complementares. Confira, nas páginas a seguir, o que sua empresa precisa fazer para ser ágil e antifrágil neste mundo VUCA.

 

 

Em meio a uma nova rodada de turbulências, muitos se perguntam por que o Brasil ainda não deu certo. Estaria o País eternamente condenado a sofrer com altos e baixos na política e na economia?

A resposta não é tão simples. Requer ir muito além da teoria econômica tradicional e do binômio político esquerda-direita que ainda prevalece nas leituras de cenário. O mundo real é complexo, cheio de interdependências difíceis de detectar, em que as partes se transformam, interferem, cooperam e competem entre si.

Esses sistemas complexos criados pelo homem tendem a desenvolver cascatas e cadeias descontroladas de reações que diminuem (ou eliminam) a previsibilidade, além de gerarem o superdimensionamento dos acontecimentos. Exatamente por essa razão, é hora de recorrermos às contribuições da nova ciência das redes complexas e ao trabalho do filósofo Nassim Taleb, autor do conceito de antifragilidade. Levando em conta esse repertório, é possível classificar as economias em frágeis e antifrágeis.

O segundo grupo não só é resistente a choques e momentos de incerteza, como também se beneficia com o caos – o inverso do frágil, que colapsa nesse caso. 

Os fatores de fragilidade

Neste Dossiê, Taleb diz que o Brasil, do ponto de vista cultural, não está tão distante quanto pensa da antifragilidade [veja na página 54]. O que pode aproximá-lo mais rapidamente? Identificar o que fragiliza as economias em geral nos ajuda a responder:

1. Centralização

Qualquer forma de centralização, seja na natureza ou em processos criados pelo homem, é frágil. Um ponto central transmite erros para todo o sistema, assim como sua remoção implica a quebra de toda a rede. Já um sistema descentralizado tende a se fortalecer com os erros localizados que não comprometem o todo e se tornam cada vez mais fortes.

2. Intervencionismo ingênuo

A medicina apresenta o conceito de iatrogenia, situação em que os efeitos colaterais de determinado tratamento excedem os próprios danos da doença. E é exatamente isso, a iatrogenia, que o intervencionismo ingênuo provoca no mundo real. De posse cada vez mais de informações, o interventor acredita que conhece as relações de causa e efeito em um mundo complexo e com isso está apto a “consertar” o que julga estar errado.

Na Hong Kong dos anos 1960, Sir John James Cowperthwaite, secretário das Finanças, caminhou na direção oposta do intervencionismo, com ações que surtiram efeitos rapidamente. Durante o período, sem políticas corretivas do governo britânico, a população que vivia na pobreza extrema caiu de 50% para 15% e os salários reais subiram 50%. Atualmente, Hong Kong tem um dos maiores PIBs per capita do planeta.

3. Dívida

Toda dívida é frágil, seja de governos, empresas ou famílias. O endividamento remove qualquer margem de manobra e redundância, tornando o devedor um alvo fácil dos membros da família da desordem.

Ele se torna uma espécie de escravo, vulnerável a imprevistos e mudanças de rotas. O contrário é verdadeiro: quem tem recursos em meio à desordem se torna o maior beneficiário das oportunidades que surgem nesses momentos.

4. Estrutura produtiva de baixa complexidade

Produzir castanhas de caju ou chips de computador, soja ou carros, bananas ou tablets faz toda diferença. A capacidade de uma economia produzir bens e serviços demonstra o estoque de conhecimento e know-how daquela sociedade. As economias frágeis se concentram na produção de produtos básicos, com baixa complexidade, enquanto as antifrágeis têm uma estrutura produtiva diversificada e capaz de se adaptar rapidamente a qualquer nova necessidade. Quanto maiores o conhecimento e o know-how acumulados por uma sociedade, maior a facilidade de desenvolver novos produtos e serviços e melhores os postos de trabalho criados.

5. Falta de pele em risco

A noção de colocar a pele em risco, em inglês skin in the game, refere-se à ética em que as pessoas assumem tanto as vantagens como as desvantagens por seus atos. Justamente em economias frágeis há setores e grupos protegidos que não são responsabilizados por suas ações, ficando apenas com as vantagens, e assim tomam decisões com base na pele dos outros em risco. Isso causa uma transferência de riscos e desvantagens para todos, no sentido de que a sociedade paga a conta por decisões de pequenos grupos, que literalmente não estão com a própria pele em risco. A ética da pele em risco torna as decisões na sociedade mais responsáveis.

A família da desordem

Retomando a questão inicial, por que o Brasil ainda não deu certo? Por sua fragilidade. Ele precisa reverter o quanto antes esses cinco pontos: descentralizar o poder, reduzir o intervencionismo ingênuo e a dívida, diversificar a estrutura produtiva e abraçar a ética da pele em risco, tornando a economia antifrágil. Enquanto isso não se materializar, sofreremos sempre que formos visitados pelos membros da família da desordem.